Estou escrevendo este relato na tarde do dia depois de voltar do curso. Quero tentar resumir uma coisa mais teórica do que ficou, num outro texto vou tentar lembrar e contar das experiências no salão.
Olhar a si parte de uma compreensão separando a pessoa como que em três partes: as palavras e ações dela no mundo; as emoções, sentimentos, pensamentos, sensações, desejos (que podem ser meio bagunçados e várias vezes difíceis observar, mas que ainda seriam perceptíveis) e uma parte que chamamos de “caixa preta”, onde os estímulos que recebemos do mundo exterior (luz, ondas sonoras, etc) são captados ao chegar, de formas que não conseguimos discernir claramente.
Essa captação acontece de certa maneira, ganhando significado e cor com que aparecem na nossa consciência. Ao ouvir uma coisa que a outra pessoa fala, penso que ela é misteriosa. A questão é que além de esse pensamento “misteriosa” não ser a realidade, não ser a pessoa mesmo, ele é pensado com base no que é captado, e que já chega formatado de uma certa forma. Quando ouço a pessoa falando uma coisa, estou ouvindo de uma certa forma. Recebo as palavras como uma tentativa de parecer inteligente, como uma desculpa, como uma cobrança velada… E aí as minhas reações acontecem como se fosse a outra pessoa que está fazendo essas coisas. Não é só que meus pensamentos não são a pessoa, os pensamentos surgem em relação a coisas que não são as ações e palavras da pessoa.
Mas não é a outra pessoa que falou, não de verdade. É a minha captação dela, um personagem no teatro da minha consciência. Falar assim ajuda a lembrar que a outra pessoa existe fora de mim, que eu recebo apenas as suas palavras e ações e capto elas de certa forma que fazem eu sentir/pensar diferentes coisas. Eu não reajo ao que a pessoa falou, reajo ao que eu capto do que ela falou. Olhar a si é lembrar da existência dessa caixa preta e do fato que as pessoas e as coisas existem fora de nós, só chegando indiretamente até a nossa consciência.
Mesmo pensar, por exemplo, que eu reagi com raiva porque achei que a pessoa estava me dando uma desculpa esfarrapada, ainda estou falando com palavras de uma coisa que acontece antes das palavras.
Isso de estar antes das palavras me pegou bastante. Sempre que aparecem palavras para dizer como é uma coisa, como é o si, o que aconteceu em uma situação, é uma faca de dois gumes. Por um lado joga luz em uma coisa e pode relaxar um enrosco, mas se acontece de factualizar, de pensar “eu quis isso porque senti assim”, se não estiver sentindo que isso é só um pensamento e não uma verdade sobre como é o si, entra em um looping de pensamentos e emoções de novo. Quando faz as coisas porque alguma coisa é assim, fica um gosto amargo na boca, independente do que fez.
Não tem um final nesse processo. As vezes imagino que teria uma grande descoberta para fazer, “o meu desejo profundo é X e eu estava escondendo isso!”, e aí vai ficar tudo bem para sempre, vou conseguir ouvir o outro porque tenho consciência plena dos meus desejos e de quem eu sou.
Alam falou durante o curso: objetivo é conhecer a si que não conhece. Como é o si que não conhece as coisas, que reage? Afinal, na realidade é assim, nós só reagimos, não temos o conhecimento da realidade. Reagimos ao que captamos, e captamos antes das palavras. Tudo que se pensa sobre isso é uma cristalização, um pensamento sobre um processo que segue acontecendo o tempo todo. No fundo, é uma pesquisa que se faz tirando o que não é essencial e vendo o que fica. Quantas vezes a gente não pensa “ah, eu sou assim”, uma imagem que pensou, e aí quer agir como se fosse assim que reagisse de verdade. Quero chegar perto do outro e penso “Eu sou uma pessoa divertida”, já que as pessoas gostam de pessoas divertidas, e aí tento agir de acordo com o que tenho na minha cabeça sobre como pessoas divertidas agem. Mas eu continuo captando as coisas e sentindo coisas de jeitos que eu não entendo, e que são infinitamente mais complexos do que qualquer ideiazinha como “ser uma pessoa divertida”.
Perceber que todos os pensamentos e reações vem de uma caixa preta, uma máquina de produzir percepções. Quando estou agindo nesse lugar de achar que eu ou o outro SOMOS assim, somos a imagem que temos de nós, tenho confiança por um lado e me sinto uma fraude por outro, é uma grande fragilidade.
Treinar a inteligência para perceber que quando sentiu que “o mundo é assim”, “eu sou assim”, isso aparece a partir de uma coisa que foi captada. Sinto que o curso teve muito de entrar em contato com esse movimento de tratar algo como uma realidade e se arriscar a soltar essa certeza, se acostumar com o estado de não ter certeza onde é mais tranquilo aceitar que “ah, eu percebi assim”.