Por que eu acredito em fantasmas

Nesta semana do curso “Conhecer a si” um tema que foi bastante importante para mim foi o medo. Quando cheguei no curso, tive medo de ficar sem celular. Meu medo é que, sem o celular, eu não teria nada para ouvir e me distrair de várias fantasias ruins que eu teria da hora de dormir. Eu não sabia se conseguiria dormir imerso no silêncio e na escuridão sem fim.

Durante a semana, me marcou muito perceber que esse mundo imaginado de fantasias tão complexas só acontece porque conseguimos criar essas ficções à partir das coisas que percebemos no mundo, e depois começamos a criar ficções sobre as ficções, e quando nos damos conta temos uma história super complexa e com várias camadas, que é somente uma tentativa de fazer sentido de todas as coisas que percebemos – a ficção tem verossimilhança, mas não precisa necessariamente se aproximar da realidade. A realidade está lá, existindo independente das nossas fantasias sobre ela.

Outra coisa muito marcante foi perceber um grande medo que tenho, que é o de causar sentimentos ruins nas outras pessoas. Geralmente, as pessoas manifestam seus sentimentos ruins gritando ou falando de um jeito agressivo. Na minha ficção, opera que isso é porque elas sentem raiva, e se sentem raiva é porque eu fiz alguma coisa errada.

Quando alguém é agressivo comigo, já sei como a pessoa vai agir, o que eu fiz, como eu vou responder mostrando que tudo é uma falha de comunicação, e às vezes, nessa cena imaginada toda, eu saio bem da situação, mas às vezes não. Esse filme todo acontece na minha cabeça só baseado em alguém estar gritando.

Gritos dos outros me dão um embrulho no estômago, que não é a sensação de vomitar porque comi algo estragado, mas um outro tipo de embrulho. Quando eu era bem pequeno, eu estudava numa escola que era um casarão bem grande e antigo. Tinham algumas áreas da construção que os alunos não deveriam ir – provavelmente o motivo de verdade era operacional, como tentar manter o silêncio perto da diretoria e da tesouraria, ou simplesmente evitar que as crianças se perdessem naquele monte de corredores e jardins.

De vez em quando, algum amigo meu daquela época queria ir a algum lugar proibido. Eu sentia que não deveria ir, e quase sempre me diziam: “qual é o problema? Está com medo? Acha que vai acontecer o que? Tá com medo de levar bronca da diretora?”. Daí me vinha um misto de querer respeitar as regras, de ficar com medo da bronca, de ficar com medo de rirem de mim, tudo ao mesmo tempo, que vinha como um embrulho no estômago.

Eu estava sentindo esse embrulho desde muito antes do curso, desde uma situação em que senti uma agressividade muito grande vinda de alguém.
Isso parece bobo quando eu conto, mas nem de longe é meu medo mais bobo.

Uma noite, durante o curso, eu estava com um amigo e fomos com uma lanterna de luz negra para ver como as coisas dentro da trilha da mata brilhariam. A luz negra é bem divertida, porque algumas coisas acendem com cores que não parecem nem um pouco com as cores que elas têm numa luz mais natural. Ainda bem que não fui sozinho, porque provavelmente eu teria medo.

No caminho para a trilha, passando pelo gramado, encontramos uma ossada de um pássaro. No começo não entendemos que era isso, porque a ossada brilhava num verde super vivo, e parecia um talo de couve-flor. Só que, chegando mais perto, vimos que era um osso de peito, e ali perto tinha algumas penas, e depois, espalhados em volta, ossos bem fininhos. Da maneira que estavam, parecia que o pássaro tinha sido sacrificado em um ritual.

Ignorei essa ideia de ritual e fomos em frente em direção à mata. Depois de tropeçar em alguns buracos e gramas altas, chegamos na boca da trilha. Apontei a lanterna para a escuridão, mas eu não conseguia uma visão nem muito distante, nem muito clara, nem com a abertura muito grande, como se fossem aquelas lanternas de filme de terror. Eu precisava mover a lanterna muitas vezes para enxergar o suficiente para me movimentar, e, a cada vez que iluminava outro lugar, eu tinha certeza que iria encontrar Sara, a menina fantasma.

Sara era uma menina de 8 anos de idade que entrou na mata para procurar o olho de seu ursinho de pelúcia, e depois disso nunca mais foi vista. Alguns dizem tê-la visto com um vestido rasgado e sujo, segurando o ursinho sem um olho. Ela aparece assustanto as pessoas, gritando e passando muito rapidamente no limite de onde é possível enxergar com a lanterna.

Na entrada da tilha, tenho certeza que Sara está lá. Tento me convencer de que ela é uma obra de ficção da minha cabeça, mas mesmo que saiba disso racionalmente meu coração ainda dispara, minha pupila dilata e eu não sei bem se tenho coordenação nos braços e nas pernas para correr sem tropeçar. Eu queria desistir da trilha, porque sei que ela é uma ficção, mas isso não significa que eu deixe de ter medo dela. Ao mesmo tempo, eu queria ir em frente, porque sei que Sara é ficcional, e começo a sentir uma grande angústia, porque eu não podia acreditar em Sara já que só crianças acreditam em fantasmas, mas meu corpo mostrava que eu acreditava mesmo que eu já tenha decretado que não sou criança há muito tempo.

Então meu amigo diz:

– Não quero mais entrar. Estou com medo.

Ufa.

– Sem problemas, voltamos outro dia. – respondo, e voltamos para casa.

Acho que foi uma das primeiras vezes na vida que senti que era tudo bem ter medo, mas tudo bem mesmo – não tudo bem “eu até aguento seu medo”, não tudo bem “a gente segura essa para você”, não tudo bem “tenho uma ideia para seu medo passar”, mas tudo bem “medo é uma das coisas possíveis de se sentir e ninguém te pede explicações quando você está feliz então não precisa explicar o medo também”.

Sara é assustadora e implacável. Ela pode me perseguir para sempre porque ela existe na minha imaginação. Mas, há algo: eu sei de toda a história de Sara, sei por que ela me persegue, sei que estarei seguro se não entrar na mata. Eu sei disso tudo porque eu que inventei a Sara, mesmo que tenha inventado sem querer.

A mata de verdade é muito mais assustadora, porque eu não faço a menor ideia de como ela é de verdade. Não sei se tem cobra, se tem aranha, se eu vou tropeçar numa raiz, pisar num formigueiro, sei lá. Sara é um fantasma bastante confortável, porque é um vilão bem definido e que ainda por cima eu posso combater mentalizando que ela não é real.

Me parece que é a mesma coisa com as pessoas agressivas.

Quando a pessoa está gritando, eu não faço ideia do que está acontecendo. É terrível imaginar que eu sou a causa dessa dor toda, mas ao menos nesse caso eu entendo o processo, assim como eu entendo a Sara. Mas a verdade é que as pessoas estão gritando e agindo por motivos que eu não tenho acesso (e talvez nem a própria pessoa entenda), não tenho como solucionar e nesse tipo de situação eu não tenho o menor controle – igual às coisas que me esperam na mata escura.

Isso é muito mais aterrorizante que a “certeza” de poder fazer – ou talvez de ter podido fazer – algo a respeito. Mas, naquele momento, eu também tinha uma memória de que sentir medo é tudo bem.

Quando me dei conta disso, meu pensamento clareou. Talvez as pessoas gritando só estivessem manifestando uma grande dor, e essa dor é delas mesmas, não minha. Não tenho o poder de causá-la, muito menos de curá-la. O que eu posso fazer de verdadade é ficar longe, porque eu realmente não gosto de pessoas gritando. Meu coração se acalmou, e aquele embrulho no estômago que eu sentia fazia muito tempo passou, mesmo com a memória tão vívida de vários gritos e agressões que eu tinha ali por perto.

Sentir medo é tudo bem.

Felicidade, também.

Raiva, também.

Não é culpa de ninguém.

Naquele dia, eu voltei sozinho ao gramado. Sem lanterna. Quando saí do alcance da luz da casa, fechei os olhos para que eles se acostumassem com a escuridão. Andei um pouco, e logo encontrei a ossada dos pássaros, que ainda estava lá. Olhei para um lado. Olhei para o outro. Pisquei. Nem sinal de Sara.

Só tinha o silêncio e a escuridão sem fim.

Fiquei longe da mata porque sei lá que tipo de bichos estariam lá dentro.

De uma certa forma, eu queria ter encontrado a Sara, porque ela me ajudou a enfrentar meus próprios medos quando eu achava que não era tudo bem sentir medo. Talvez ela tenha encontrado o olho de seu ursinho. Talvez tenha encontrado amigos fantasmas que a mostraram que é tudo bem quando os ursinhos de pelúcia ficam sem um olho. Acho que não tenho o menor controle sobre isso.

Conhecer a si julho 2022

As coisas que vi, ouvi, a maneira como captei, minhas memórias, tudo isso está dentro de mim. não há o que negar, não tem por que querer mudar ou anular. O que dá para fazer é olhar e reconhecer que estão assim dentro de mim.

Ao colocar aos outros as coisas que vou vendo em mim para os outros assim como elas estão, sinto que vou me distanciando e aceitando como é, para daí começar a poder olhar mais objetivamente.

Colocar o que pensei para as outras pessoas ouvirem, tento ouvir o que as outras pessoas estão colocando, vou aos poucos entendendo (conhecendo) que é tudo ficção?

O jeito que aprendi a fazer foi de tentar me segurar as minhas ficções para tentar manter a ordem, evitar os problemas e dores, encontrar prazer etc. Ter experimentado viver o que vivi em Suzuka por exemplo, vou aos poucos conhecendo que existem outras maneiras de fazer, outras maneiras de se relacionar. Acho que o contato com um ambiente assim permite visualizar um jeito de estar (ser) que é mais verdadeiramente seguro, satisfatório, leve, divertido…

Será que a existência desse ambiente não é o que favorece se sentir seguro para poder soltar as amarras e aceitar tudo que se passa na minha cabeça é apenas a minha imaginação?