O estranho Ser que me habita

Já faz alguns anos que eu tenho uma prática de escrever todos os dias de manhã. Acordo e escrevo sobre o dia anterior, sobre algo do meu sonho, sobre alguma sensação no corpo, marco meu ciclo e tal. Mas esses dias eu venho percebendo um padrão naquilo que escrevo, percebendo onde estou colocando o foco quando escrevo sobre mim, sobre o que estou vivendo. Fui percebendo que tem sempre uma análise de algum padrão meu e uma vontade de superação desse padrão, como se eu tivesse sempre olhando e julgando se eu estou indo bem, se estou melhorando, se estou me tornando mais consciente de mim mesma, se estou chegando em algum lugar.

Ultimamente eu tenho percebido que esse foco em uma análise do meu comportamento e das minhas ações, muitas vezes tira o foco do coração original. Como se tivessem sempre 2 objetos na sala e eu tivesse sempre escolhendo olhar pro mesmo objeto, sendo que o outro está sempre ali disponível mas eu nem percebia. E aí aconteceu alguma diferente…

Nesses dias eu fui contratada para fazer o design da capa de um livro, de uma pós que eu frequentei. Daí eu fui pesquisar nas coisas que eu tinha de material da época que fui aluna, comecei a desenhar algumas coisas, mas ainda assim algo não estava fluindo. Comecei a me julgar, achar que eu não ia dar conta, de que eu não sou boa o suficiente, de que eu não ia ter capacidade e aí de repente eu parei de olhar pra isso, percebi que isso já é um julgamento até meio óbvio e falei: tá deixa eu olhar para o que está acontecendo dentro de mim! Foi aí que algo mudou, eu consegui ouvir que eu tava me sentindo sozinha, faltava escutar as pessoas que escreveram o livro, faltava criar um briefing junto com elas, ouvir o que elas desejam que represente aquela capa, eu não preciso “dar conta” das coisas sozinha, pois pra mim é importante a participação do outro nesse trabalho. Consegui trazer isso pra editora e marcar uma reunião para essa escuta e cocriação do briefing com a equipe. Só esse movimento parece que já foi muito mais íntegro do que se eu ficasse tentando inventar as coisas só da minha cabeça, me senti colocando o coração nesse projeto e não tendo que entregar algo.

Fui percebendo que estou desconstruindo muitas ideias de como as coisas “tem que” ser feitas, e escutando mais: – como eu quero fazer? Quando tem esse jeito de como elas tem que ser feitas eu fico presa em um padrão que eu posso analisar se estou alcançando ou não. Quando consegui escutar como eu queria fazer, veio uma resposta diferente, uma ação inesperada, e eu nem sei se vai dar certo ou não, mas que fez mais sentido.

E aí nesses dias que eu tenho conseguido tirar o foco desse lugar de sempre, que é essa que fica analisando se estou fazendo a coisa certa, se estou alcançando o padrão, e que fica tentando resolver os problemas que eu achava que tinha, comecei a colocar o foco no que quero de verdade, eu tenho conseguido falar pras pessoas o que quero, tenho conseguido realizar outros movimentos e aí eu tenho me sentido muito estranha. Sair do padrão automático gera um estranhamento e aí sinto que eu volto pra essas fixações só pra me reconhecer um pouco, mesmo que não seja bom.

Sinto que fazer a reunião As One toda semana, ter feito 3 meses de jornada online com a Ana Thomaz e as aulas de psicomotricidade, têm me dado muito mais segurança para habitar a estranheza de ser mais eu mesma. Habitar espaços onde todos estão juntos te ajudando a tirar o foco do objeto fixado, para olhar pro objeto vivo, movente e interconectado que sou, gente pra dizer vem ser estranho com a gente! O que quero dizer é que vou percebendo essa autocriação em relação e podendo se dar a partir do momento em que comecei a ter mais tempo de relação com esses grupos no meu dia-a-dia. Quando deixou de ser apenas um retiro e se tornou parte da minha rotina.

Mesmo sendo online, e não tendo tempo para aprofundar as questões, o ritmo de encontros tá fazendo um efeito muito grande nas pequenas coisas do dia-a-dia. Não precisa mais ser aquele grande insight da vida, dá pra ir percebendo nas ações, nas relações, alguns pequenos intervalos capazes de mudar o foco habitual.