Diálogos de quarentena, ep.2

Mari, Julia e Pedro na cozinha, tomando café:

M- Faz uns dois dias que eu não tomo banho

J- To sabendo haha nessa casa não se escova os dentes, não se toma banho..

P- Eu tomei ontem à noite!

M- Mas você tomou no nosso banheiro ou no do Rafa?

P- No nosso

M- Atá

J- Não sei como vocês conseguem ficar com um chuveiro que não funciona direito e não fazer nada pra arrumar

P- Nós tentamos arrumar

J- Qual é o problema então?

M- A fiação

P- Não acredito que você vai falar de novo que é a fiação! Quantas vezes já disse que não tem nada a ver?

J- Na minha casa tinha um chuveiro que não funcionava e no fim era a fiação mesmo, as maritacas comeram o fio

P- Mas aqui não é isso, porque a voltagem chega no chuveiro, a gente mediu

J- Se não é a fiação é o que então?

M- Deve ser o chuveiro

J- Então é só trocar

P- A gente comprou um novo, mas dês que foi instalado não tem funcionado direito

M- Eu preferia que você tivesse recebido o eletricista aquele dia

P- Eu tava trabalhando

M- Eu sei, é que não fiquei confortável em receber ele aqui em casa sozinha, talvez se você tivesse recebido teria entendido o que aconteceu

P- É porque você não ficou vendo ele instalar..

Pedro sai da cozinha

M- Pro Pedro tudo o que eu faço tá errado e tudo o que ele faz tá certo. Estou cansada disso

J- O Rafael também é assim, fica irritado comigo por qualquer coisa

M- Maior exagero

Terminamos o café, a Ju está lavando a louça e eu, que estava chateada com o Pedro, fui falar com ele:

M- Acho que as coisas não estão boas, mas também não sei o que fazer pra melhorar

P- Você ficou chateada com o que eu falei do chuveiro?

M- Fiquei. Se você sabe tanto, por que não resolve?

P- Você também sabe

M- Você poderia admitir pelo menos uma vez que a responsabilidade é sua ao invés de jogar pra mim?

P- Mas a responsabilidade é sua também

M- Acho que não vamos nos entender assim

P- O que você quer que eu faça?

M- Quero que você seja mais permeável

P- Só se eu não te conhecesse

M- Como assim?

P- Se eu não te conhecesse ia tentar entender o que você quer dizer, mas eu já sei o que você quer dizer

M- Se você já sabe, então a gente estaria conseguindo se entender super bem, mas não é isso que está acontecendo né? Ao contrário, estamos emperrados

P- Verdade, o chuveiro é a prova de que tá emperrado mesmo

M- Pois é! Por isso acho importante a gente entender por quê. Na reunião vai dar pra ver isso melhor…

P- Era pra ter tido reunião ontem, mas ninguém lembrou disso. E acho que vocês vão esquecer da faxina também

M- Mas a faxina tá combinada, vai ser amanhã.

P- Tá, quero ver

M- Bom, eu vou indo, só vim aqui pra dizer como eu tava me sentindo. E do seu lado, como é?

P- Como é o que, não entendi

M- Eu to achando que nossa relação tá bem bosta, isso me incomoda. Pra você tá tudo bem?

P- Pra mim sim, eu só quero que você faça as coisas que tem que fazer

M- Entendi

P- É que eu não espero nada de você, o que vier eu aproveito do jeito que é

M- Então pra você tanto faz, é indiferente

P- Pra mim a prioridade é fazer as coisas da casa e se fazendo isso a gente se der bem, maravilha. Igual no trabalho, não estou lá para fazer amizade, mas se de repente rolar vou aproveitar

M- Pra mim a amizade é o principal

P- Por isso que seu jeito me irrita tanto. Você tá bem ai de pé, não quer sentar?

M- Quero.

P- Então, pra você basta eu te agradar que tá tudo resolvido

M- Isso mesmo!

P- Se eu te tratar bem você vai fazer o que eu quiser

M- Possivelmente

P- Que bobagem!!

M- É né haha

P- Bom, eu não sei ficar agradando, ainda mais quem eu tenho intimidade

M- Não é estranho isso? A gente trata mal quem a gente tem intimidade

P- É bem estranho mesmo

M- Mas é muito bom poder ser honesto

P- Na rua a gente tem que ser legal pra poder se vender por aí

M- É bom chegar em casa e não precisar se esforçar pra ser “educado”

P- É mesmo

M- Achei interessante seu jeito de pensar, nunca tinha pensado assim

P- Percebi! rs

M- Você não coloca o foco nas relações, então deixa livre pra serem o que for

P- Isso mesmo

M- Pra mim o foco é sempre as relações

P- Por isso que você não consegue fazer o que precisa fazer quando as coisas não vão bem

M- Verdade

P- Me incomoda você ser assim

M- Sabe que já me senti incomodada por minha mãe ser assim? Quando ela tinha uma loja, contratou mais de uma pessoa pra “ser legal”. Uma sumiu, a outra roubou o caixa, e ela ficou super frustrada. Não ligava pra loja, mas queria ter recebido algo em troca, queria a amizade… e é assim com tudo.

P- Esse negócio de ter que dar algo em troca não tem nada ver. Já aconteceu de uma pessoa falar umonte de coisas que ela fez por mim e eu não lembrava o que eu tinha feito por ela, porque não fico contando essas coisas. Tem que fazer e esquecer

M- Naquele texto que eu tava lendo, falava que o trabalho do cuidado, quando bem feito, passa despercebido. Só vamos perceber quando falta.

P- É o trabalho ingrato da mãe

M- É tão necessário, tão elementar, que passa despercebido

P- O problema é que não dá pra trocar uma atitude por outra – fez comida por isso vou levar pra assistir um filme – não vai substituir nunca

M- Deixa de ser cuidado quando é troca

P- Não deixa de ser cuidado, só não dá pra trocar mesmo! Nem as mercadorias dá pra trocar, mas fazemos isso o tempo todo..

M- É incrível como a gente parece que vai se matar e de repente cai umonte de fichas. Deu pra sacar que cada um tá colocando o foco num lugar diferente. Se você não fosse tão chato não teria percebido isso…

P- De nada

M- Besta! rss

P- Se você não é honesto é porque você tá manipulando a situação. Você tem que falar o que pensa! Ou então você só observa a outra pessoa e joga com isso pro seu interesse. Como achar que o outro é cabeça dura e pensar “ele é assim” e começar a agir a partir disso.

M- Fazer a contabilidade

P- Isso

M- É.. foi dahora

P- Obrigado pelo cuidado de ter vindo falar comigo

naikan – 04 a 10 de julho/2020

Relato da minha vivência

Minha motivação para vir fazer o Naikan veio da minha saturação da presença contínua de meu companheiro na minha vida, nesses tempos “pandemônicos”  e também porque me sentia angustiada, ansiosa e mesmo irada às vezes com acontecimentos políticos de dentro e de fora. 

Chegando na Vila Yamaguishi gostei de rever o Alam e a reforma da casa de recepção, para onde foi encaminhada. Como tivemos um tempinho até a chegada da terceira participante, observei os arredores, os aposentos, admirando, olhando o “fora”.

Tivemos depois um encontro para saber o que era o Naikan com Romeu e Alam e um vídeo do Yoshimoto explicando a origem do sistema e como funciona. Pode ser feito concentrado (por 1 semana, como no caso) ou no cotidiano.

Olhar “dentro”, e lembrar fatos concretos envolvendo o eu Virgínia com as pessoas mais próximas, ( uma de cada vez ) desde o meu nascimento até o final da minha relação com essa pessoa, segundo o enfoque:

  • O que ela fez por mim
  • O que eu fiz por ela
  • Que preocupações ou aborrecimentos eu lhe causei

Para facilitar esse exame estávamos eu e minhas duas colegas em quartos individuais e banheiro idem, onde ficaríamos por uma semana isoladas do mundo exterior a não ser com o ouvidor que a cada hora, batia na porta chamando para uma entrevista, feita fora do quarto. A sua função era somente ouvir, sem julgamentos ou palpites. Apenas auxiiando para que o processo da pesquisa se cumprisse adequadamente.

No quarto existia uma cama, um armário, uma mesa com uma cadeira onde se fazia as refeições e um biombo que restringia o espaço do quarto, evitando estímulos visuais dispersores, para facilitar o mergulho nas memórias do período que se estava examinando.

Mesmo quando se ia ao banheiro ou se fazia as refeições, a pesquisa prosseguia. O foco era estar concentrado, sem se perder do Naikan, no período examinado.

Como a mãe é a primeira pessoa com quem todo ser humano se relaciona inicialmente, a pesquisa começa com ela. A mãe.

Chi ! pensei… vai ser difícil não me lembro de nada ! Mas aos poucos fui entrando no túnel do tempo e visitando situações, lugares experiências vividas com ela.  Com relação a pergunta o que ela fez por mim foi mais fácil. Mas o que eu fiz por ela… me mostrou que foi muito pouco e percebi que eu fui muito exigente quanto ao que gostaria que ela me tivesse feito e o que eu fiz, muito pouco. Também sempre pensei nas preocupações que ela me causou e agora pensando nas preocupações que eu causei, me sinto compadecida dessa mãe.  Veio um forte senso de gratidão pela mãe que me deu a vida, que me cuidou como pode, tanto tempo, até que eu pudesse cuidar de mim mesma. Percebi que com a maturidade consegui dar, fazer a ela um pouco mais. E ter consciência de que a vida é preciosa, é curta e não temos tempo para sermos infelizes com nuvens pretas que nós mesmos criamos sobre nossas cabeças.

Como eu sou muito do movimento, não paro quieta, foi difícil ficar nessa cadeira dentro do biombo. Eu levantava, tomava chá, e ia ao banheiro, voltava e sentava. Lembrava que estava de máscara, levantava, tirava a máscara e voltava a sentar dentro do biombo. Levantava, me alongava um pouco e sentava novamente. Ah! que vontade de socar o biombo! … Mais um pouquinho Virgínia, puxa vida que esforço hercúleo para me focar, me concentrar! Às vezes fluía. Parecia realmente que eu deslizava por um túnel de tempo e as paragens aconteciam me retratando as e nas relações. Isso me dava alegria e estímulo para continuar. Quando vinha o Romeu, meu querido ouvidor, eu reportava o que havia examinado e até na minha ansiedade adiantava o próximo período quando então ele me reforçava o foco. O enfoque era restrito, a cada entrevista, à um determinado período. Por exemplo de zero a seis anos, de seis a 12 anos e assim por diante até o falecimento da mãe, no caso.

Depois da mãe veio o pai. Surpreendentemente lembrei de ternos momentos com ele. Ele me fez muitas coisas e eu muito pouco para ele. Essa sensação de pobreza de mim para ele me angustiou. E as preocupações que causei ficaram claras como a figura dele no contexto cultural que vivia.  Inverteu um pouco a crença de que meu pai não foi suficientemente bom para mim ; eu não fui uma filha suficientemente boa para esse pai. Com ou sem culpa ou julgamento mas um amargor e uma tristeza no peito. Uma vontade apertada dentro do meu peito de soltar as amarras do tempo e voar para a liberdade de expressar o meu amor por ele.

Depois do pai veio o sogro, pai do meu falecido marido Furio. O seu Umberto, meu segundo pai. Amoroso, aceitador de mim total. Lembrei do muito que ele me fez. Mas também do muito que eu fiz para ele. Foi equilibrado. Foi amor.

Na sequência, o Furio. Ai, ai, ai !!! Fui muito amada. Mas me vi uma criança mimada na relação com ele. A medida da evolução, no tempo, dessa nossa relação houveram mais trocas equilibradas entre dar e receber. E também quanto as preocupações, houve mais compreensão, mais acolhimento, mais continente afetivo. Percebi que era movida muito pelo desejo, e ele pela mente. Agora o desejo é plena mente.  No sentido de ter aprendido aqui no Naikan o exercício do cérebro profundo, de ir além do reptiliano, dos instintos e desejos imediatistas e compreender objetivamente como as ações repercutem no outro e em mim também. Escolha para ter a consciência. E com isso, a paz.

Depois do pai, o filho. Focalizei a minha relação com o Fabio meu filho do meio (tive três). Também veio muita dor. O que eu fiz. Como eu fiz? Poderia ter feito diferente?? ! !  As preocupações que causei, as reações, as consequências… Se um olhar novo para o passado muda o passado… Se o fato suplanta a fantasia… Se a clareza limpa a alma…  Me sinto encorajada. Para ver, fazer, receber a vida que me resta. Que examinando os anos de 0 a 74 voaram!!!. E provaram que entre sabores e dissabores, tempestades e calmarias, eu vivi intensamente. 

Percebi que as relações são muito, muito mais importantes que as delações. Que a vida consciente e feliz é um equilíbrio entre dar e receber. Saio daqui agradecida pela oportunidade dessa revisão da minha vida, resgatando a minha história, conhecendo a minha história. O que me possibilita viver intensamente o que ainda me resta, no AMOR.

Um ótimo recurso para o auto conhecimento no “concentrado” e providencial para o cotidiano daqui para frente. Além de tudo isso, num ambiente muito agradável. Comida suficiente e equilibrada. Banho delicioso e um ouvidor atento e focado.

Gratidão.